O Jogo das Contas de Vidro

leticia cordis
3 min readMar 29, 2021

--

Estou na segunda leitura de “O Jogo das Contas de Vidro” de Hermann Hesse. A primeira faz mais de dois anos, a segunda, agora, revira-me as impressões da leitura anterior. De fato, o que notei, desse, que designei como meu livro favorito quando o li, é que algumas informações sequer haviam sido compreendidas por mim. Nesse sentido, chamei de favorito um livro que sequer entendi e nem posso garantir que agora entendo. E por que não, né? Dito isso, interessa-me dizer algumas impressões sobre o dito magnus opus de Hesse e a partir daqui, ocorrerão muitos spoilers. Go!

O que não havia notado é a forma como Hesse aborda a personalidade de José Servo: Este homem é a manifestação da boa intenção e é constantemente recompensado pela sua conduta profundamente equilibrada. Servo tornou se magister ludi não por que queria, mas por que toda a harmonia de seu comportamento levou-o ao alto cargo — havia nele, inclusive, traços de desagrado em assumir um compromisso tão sério, que lhe tiraria a liberdade. O fato é que a narrativa de Hesse mostra um homem que aparou pouquíssimas arestas em sua postura perante a vida desde de que era criança, pois poucas eram as que precisavam ser aparadas — ele precisou sim fazer muitos ajustes, mas suas questões eram já muito sutis. Servo nasceu quase pronto!

Com efeito, no livro, a explicação para a conduta belíssima do protagonista é melhor explicada não pelas condições materiais de sua existência, mas pelas reencarnações heroicas que viveu. Assim, por exemplo, quando anteriormente, em uma vida passada, encarnou em uma comunidade tradicional vinculada à noções de espíritos da natureza— uma das três histórias do final do livro — , foi ele quem deu-se em sacrifício para que voltasse a chover! É possível interpretar que o livro defende que este homem é bom pois colhe os méritos de reencarnações passadas e nesse sentido ele é melhor que aqueles que o rodeiam. Dá a sensação de uma defesa sobre a desimportância da história como disciplina que trata a realidade.

Entretanto, a relação de Servo com o padre Jacobus demonstra a consciência sobre isso e uma possível complexificação sobre o que de fato é a-histórico e qual o papel da história na trajetória da humanidade. Talvez esse seja o tema mais caro ao livro, afinal Tegularius, o instável amigo de José, tem profundo desprezo pela história, assim como toda a Ordem Castálica e é contraponto não apenas do magister ludi, mas também ao padre. De fato, Jacobus, mediado pela sua noção de história, demonstra-se um homem não apenas erudito, mas universal e com desprezo a diletantismos, enquanto Tegularius é um homem não integrado com a comunidade e com tendências individualistas e egoístas. Isso porque, para esse amigo de Servo, o histórico é fútil e não apreende o que realmente importa, o abstrato, o independente, o eterno e o puro. Não atoa, Tegularius ama Platão.

Dessa forma, Hermann Hesse quando abre a questão propõe intercâmbio entre a relação entre o que é eterno e o temporal e como ocorre a interação para o desenvolvimento humano. José Servo em determinado momento está diante da compreensão de que pessoas nascem com tendências e estas estarão mediada pelo curso da história, mas não se sabe o quanto, nem por que, nem pra quê. Servo demora a notar isso — o que ocorre pela interação com o Padre Jacobus, uma representação do sagrado — ser religioso- que acolhe o profano — a história.

A solução para o dilema posto no livro envolve a única possibilidade vista por Servo: o rigor de ouvir sobretudo a própria experiência individual de liberdade, mas veja, essa é a resposta humana para a incompreensão, mas o livro não resolve o grande dilema da vida proposto. O livro parece-me o processo de aprendizado sobre a questão para o próprio autor e ele não sabe como resolver. E ele tenta e mostra que falhou, essa é parte importante da mensagem. Veja, não saber resolver não é um problema, e o autor parece descobrir — junto com José Servo — que o desconhecimento é parte da vida e esta só pode ser apreciada em sua completude quando o não-saber é acolhido no seio da experiência na Terra. Para mim, faz muito sentido, por isso o final inominável e especulativo da vida de José Servo. O narrador do livro — que não necessariamente sabemos quem é- assume que forjou o final pois este é desconhecido, o homem simplesmente desapareceu e dizer que ele morreu afogado no lago é literatura dentro da literatura! A dança entre o efêmero e o perpetuo não está disponível a compreensão humana.

(Em breve, uma parte 2 sobre personalismo)

--

--